sábado, janeiro 17, 2009

Conversa

Memories always start 'round midnight
Haven't got the heart to stand those memories,
When my heart is still with you,
And ol' midnight knows it, too.

- Hoje vi um filme, Vergílio, e lá dentro vi o amor. Porque nada foi declarado, mas era claro.
- ... Se calhar devias consultar um médico. Sabes que eu já morri não sabes?
- Tu não morreste, e nem sequer sabes que não morreste. Nunca leste a "Aparição"?
- Também deves saber que é de mau gosto fazer piadas irónicas com um morto. Podes não gostar da resposta.
- Tens razão. Eu puxei o assunto amor, porque é que ainda não deste continuação?
- Chegou a minha vez de dar um ar de graça. Tu dizes que andas a ler o meu livro mas deve ser apenas para te convenceres que és intelectual. Caso contrário lembrar-te-ias...
- De...?

- 337. O vocabulário do amor é restrito e repetitivo, porque a sua melhor expressão é o silêncio.

- Então e se eu tiver vontade de falar sobre ele?
- Tentas falar, mas nunca hás-de conseguir. É um problema de linguagem.
- E se eu precisar de dizê-lo a alguém?
- Dizes. Em silêncio.
- Silêncio...o silêncio não diz nada ... Só desdiz.
- É em silêncio que as maiores emoções da tua vida acontecem. Que as maiores verdades se revelam. Como ... não diz nada?
- Tu falas mesmo como sendo o autor da Aparição ... terei de entrar no teu jogo então. Vou ter de acreditar em mistérios. Em revelações. Em indizíveis. Em impossíveis.
- Em equilíbrios e encontros icognoscíveis.
- Encontros icognoscíveis ... gostava de fazer uma pausa e ouvir-te falar disso, porque gosto de acreditar nisso...

- No insoldável de nós, com a sua mutabilidade, se decide radicalmente a escolha do quem somos.(...)É nessa relação da nossa liberdade com o icognoscível de nós que se cria o nosso "equilíbrio interior" - que é o único fundamento para as verdades humanas, com a determinação sensível do que está certo ou errado. A verdade é amor - escrevi um dia. Porque toda a relação com o mundo se funda na sensibilidade, como se aprendeu na infância e não mais se pôde esquecer. É esse equilíbrio interno que diz ao pintor que tal azul ou vermelho estão certos na composição de um quadro. Assim o que exprime o nosso equilíbrio interior, gerado no impensável ou impensado de nós, é um sentimento estético, um modo de sermos em sensibilidade, antes de o sermos em razão ou mesmo em inteligência. Porque só se entende o que se entende connosco, ou seja, como no amor, quando se está "feito um para o outro". Só entra em harmonia connosco o que o nosso equilíbrio consente. E só o consente, se o amar.

- É verdade. É pelo menos o que sinto, ou melhor, o que o impensado em mim sente que é verdade. Mas ... porque temos (ou será só de mim?) esta necessidade de dizer o que sentimos, mesmo que seja dizê-lo em voz alta só para nós mesmos? E depois percebermos que dizê-lo não vai fazê-lo sair.
- Desculpa ser tão agarrado aos meus próprios discursos. Mas também depois de lançar um livro, estranhamente, as minhas palavras deixam de ser minhas e ficam por aí, soltas no mundo. Por isso em relação ao que falavas talvez se eu te disser...

23. Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo para tornar possível a realidade (...). Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão.

Percebas que dizê-lo o faça ser menos insuportável. Porque é excessivo e resistir à sedução de dizê-lo é difícil. Porque o que queres falar é para ti uma história de encantamento e maravilha. Porque queres tornar possível a realidade. O possível que ultrapassa o pensamento e é visível. Nem que seja numa dúzia de palavras, para que tu própria as escutes. E acredites. É uma vontade forte porque é do teu subsolo, porque é uma sem razão.
- Embora por mais que eu fale nunca consiga dizer o que quero. Vejo-o melhor do que o explico.
- Se o vês é bom, já tornaste possível a realidade. Porque já tens a certeza de que existe.
- Porque sinto.
- Porque sentes, essa é a primeira relação com tudo. E tu têm-la.
- O problema é que este possível, como tu dizes, é um impossível. Um impossível que me encanta.
- ... Eu não resolvo problemas. Só falo sobre eles.
- Tu não resolves problemas. Eu nem falar sobre eles.
- Porque é que em vez de te concentrares nessa vontade que tens de acreditar naquilo que tu já acreditaste, não tentas comunicar o teu problema ao seu motivo.
- Em silêncio?
- É possível dizeres "as tuas mãos são lindas, os teus olhos são lindos, a tua boca é linda, o teu cheiro é ... lindo, a tua presença é ... é ... linda" e todas as outras baboseiras em silêncio. Todas essas baboseiras ... lindas.
- Confesso que não és assim tão louco. Sabes porquê? Porque pode dizer-se muita coisa sem nada dizer se houver alguém disposto a ouvi-lo. Posso sentir um silêncio que se recolhe ou um silêncio que se expande. Posso dilatar o meu coração se houver espaço para isso. E o espaço não se diz pois não?
- Pois não. O espaço não se diz.
- O espaço não se diz.

- O espaço
- Não se diz


205. É Primavera. É bom encostarmo-nos ao nome e ser alegres. Porque há nomes que são já o que podemos ser neles. É Primavera. "E por vezes é Inverno". (...) Hoje, todavia, houve sol e havia já verdura à sua espera. Há uma aragem na tarde grande, olho da janela o tremular das folhas. O sol parte-se nelas num cintilar febril. Olho-as muito tempo até já não as ver. E o que vi depois foi uma alegria sem razão, que é a razão de tudo o que existe e a não tem. E escrevo isto antes de já o não saber.

1 comentário:

Anónimo disse...

Cumprimentos ao Vergílio.

Também quero disso que comeste/tomaste. Hehe. Nice text.