domingo, março 15, 2009

(So) Broken

Lembro-me de quando ia brincar lá para baixo para o parque e preparava com folhinhas das árvores e terra o meu almoço. Às vezes tinha até uma panela e um fogão, como lá na terra dentro de uma cestinha. Também podia pôr um bocadinho de água e alí estava eu, feliz cozinheira do dia. Lembro-me quando levantar-me cedo era uma alegria, para ver desenhos animados e comer pão com manteiga e fiambre. Quando sabia tão bem ir para o parque brincar com sol, e a minha mãe chamar-me para comer ao meio dia. Ficava feliz só de saber que ia comer, só do cheiro bom do almoço. E quando era bem pequenina e me pediam para contar anedotas à mesa e toda a gente se ria. E me pediam para tocar acordeão "Oh Catarina tocas tão bem acordeo!" "Anita não é bonita mas acredita que a noite cai" "Ai que olhos mais lindos os desta menina, parecem duas azeitonas a brilhar!" Era extraordinário ser feliz e não ter de apontar uma razão para isso. Suponho que se recordo a minha infância como uma coisa essencialmente boa, então é porque fui uma criança feliz. Da família ficou para sempre a saudade desses tempos de canções e alegria e muita gente junta à volta da mesa. E de quando a minha mãe me cantava músicas ou contava histórias, antes de dormir. A história assustadora dos meninos que se perderam na floresta, ou aquela música triste da menina que perdeu a mãe. E eu chorava quando ouvia essa música, chorava mas gostava que ela ma cantasse antes de dormir. Daqueles momentos em que me deliciava a folhear os livros de bonecos, com as imagens talhadas pela minha imaginação, fascinante sinto-o agora, que era o que tinha para os ver, porque felizmente ainda não tinha aprendido as letras. Para sempre habitam, bem cá no fundo da minha memória essas imagens cuja história eu construí. E nem pensar em ligar ao que dizem as letras desses livros. Aquelas histórias são minhas, são as que eu via na altura, não as que todos podem ler.

Da família ficou para sempre a saudade desses tempos de canções e alegria e muita gente junta à volta da mesa.
Era extraordinário ser feliz e não ter de apontar uma razão para isso.


Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e o todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


Eugénio de Andrade, Os Amantes Sem Dinheiro.

2 comentários:

GotchyaYinYang disse...

Lindo :)

Rute disse...

=) Doce como uma laranja!